Meu caso de amor com a vida...


Ricardo Gondim
Quintuplico minha paixão pela vida. Amo acordar e descobrir que as cores me fascinam. Os gênios me intrigam. As poetisas me seduzem. Os santos me constrangem. Os justos me desafiam. Os solidários me estimulam. As poucas folhas do calendário me avisam: o tempo se esgota e a vida precisa se tornar, esmagadoramente, formosa.
Estou viciado em viver. Amo dormir depois de perceber que os sabores me esfomearam, os silêncios me atraíram, os mistérios me intrigaram e os horizontes me instigaram. Durmo com milagre perto dos olhos. Sem reação, meio estrábico, me aquieto próximo do inefável. Sei que durante o sono a ampulheta perderá mais areia. Descanso querendo eternizar o tempo, as coisas, as pessoas. Diante da precariedade de existir, tudo se torna avassaladoramente delicioso.
Fascinado, desperto para a aventura de redimir as horas. A alvorada me enamora das pessoas: os altruístas me consternam, os sábios me instruem, os artistas me animam. Por reconhecer minha madureza, quedo-me diante da fertilidade criativa de escritores, poetas, músicos, escultores. Passarei e, um dia, as bibliotecas, se tornarão pequenas para tantos livros – o Louvre carecerá de outros anexos.
Ah, se eu pudesse, minha longevidade se estenderia até o fim do milênio. Tenho gana de testemunhar inventos que ainda não existem e celebrar avanços extraordinários da ciência. Enquanto conto os minutos, noto o futuro se desdobrando em possibilidades, magnificamente, grandes.
 
O dia a dia que nunca vou experimentar há de costurar um porvir fantástico. Dói ver o imprevisível transcender a minha existência.
Na estrada, reconheço a companhia do insólito. Mesmo frágil, não me acovardo diante do risco de existir. A dor me colocou cara a cara com a realidade. Abri a caixa de Pandora algumas vezes. Convivi com a força da ruína. Não me resignei diante de tragédias. Boa parte de minha vida consistiu em alistar braços, pés e boca a serviço do bem.
Acordo e durmo espantado com as contradições da vida. Celebro ritos alegres, embora sofra com angústias que não são minhas. Se claudico em celebrar a felicidade alheia revelo mais descuido que inveja. Admito: minha biografia contém paradoxos banais. Fui impetuoso como a águia. Saltei obstáculos com a velocidade da corça. Acossado, me entoquei como a lebre. Ameaçado, rugi como o leão. Voei despreocupado com a leveza do colibri. Procurei poetizar a minha angústia. Verti lágrimas. Orvalhei os meus textos. Idealista, quase desistir em meio às minhas decepções. Em minhas contradições, permaneci fantasticamente misterioso até para mim mesmo.
Estou agarrado ao ofício venturoso de viver. Tento fechar o ralo por onde vazam os poucos dias que me sobram. Sei que devo escapar da mesmice. Reconheço que ainda guardo certos ressentimentos. Busco, então, estancar sangrias que roubam a alegria de viver. Quero alcançar a liberdade de desdenhar as conveniências que me colocam como mercadoria no balcão das liquidações. Desejo fazer as pazes tanto com as pulsões de vida como com as de morte.
Desejo continuar a engasgar diante do instante mágico em que a porta da igreja se abre e a noiva desfila para o sim do casamento. Pretendo me deliciar com o aroma delicioso do café quente pela manhã. Não quero esquecer que posso ouvir a menina cantar como se fosse uma erudita e escutar as razões da idosa como uma verdade inquestionável. Prometo a mim mesmo: serei profundamente sensível em meus derradeiros anos.
Tenho consciência de que a vida é dom. Já que perdi a pressa, desisto das onipotências e abro mão da luta pela perfeição. Anelo degustar meus poucos anos sem esquecer: não existe maior riqueza do que ser amado sem imperativos. Renascerei todos os dias para o milagre de celebrar, infinitamente, a graça.
Soli Deo Gloria

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